TÊNIS COM PLACA DE CARBONO E CORREDORES RECREACIONAIS
O Que a Ciência Revela Sobre Treino e Lesões com seu Uso pelos Corredores Amadores?
A revolução dos calçados de corrida, impulsionada pela chegada das tênis com placa de carbono (ou AFT - Advanced Footwear Technology), transformou o cenário do atletismo de elite nos últimos anos. Com espumas leves e responsivas, placas rígidas e geometrias de sola diferenciadas, esses calçados prometeram e entregaram melhorias significativas na economia de corrida e no desempenho, quebrando recordes mundiais e permitindo feitos antes inimagináveis. No entanto, grande parte dessa pesquisa e sucesso inicial focou nos atletas de ponta. Mas e os corredores não-elite, a vasta maioria da comunidade global de corrida? Como eles estão utilizando esses calçados, quais benefícios percebem, quais desafios enfrentam e, crucialmente, qual a relação disso com o risco de lesões?
Um estudo de Bonato e sua equipe, publicado em 2025, buscou preencher essa lacuna, investigando as práticas de treino e os resultados relatados por corredores recreacionais que utilizam os AFT. Para investigar o uso e o impacto dos tênis tecnológicos na prática de corrida de corredores não-elite, os pesquisadores optaram por um desenho de estudo observacional, transversal e prospectivo. Isso significa que eles coletaram dados de um grupo de corredores em um ponto específico no tempo para entender suas experiências atuais.
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário online, utilizando a plataforma Google Forms. Os participantes foram recrutados de forma conveniente, tanto pessoalmente em clubes de corrida na região da Lombardia, Itália, quanto online via e-mail e WhatsApp. Os critérios de inclusão exigiam que os corredores fossem membros da Federação Italiana de Atletismo (FIDAL) e que tivessem utilizado os tênis com placa em treinos ou competições em distâncias de 5 km até maratona. Estes tênis foram definidos explicitamente no estudo como aqueles disponíveis comercialmente que incorporam placas de fibra de carbono e tecnologias inovadoras de entressola projetadas para aumentar o retorno de energia e melhorar a economia de corrida. O questionário, validado por especialistas e testado previamente com um grupo piloto de corredores, coletou informações demográficas, detalhes sobre a atividade de corrida (histórico, volume, frequência), o uso específico destes tênis (modelos, frequência, alternância com outros calçados) e os desfechos percebidos e relatados, incluindo dores e lesões.
No total, 61 corredores não-elite (47 homens e 14 mulheres), com idade média de 38 anos e um histórico médio de corrida de 8 anos, completaram a pesquisa, resultando em uma taxa de resposta de 72%. Esses participantes relataram competir em diversas distâncias, desde 5 km até a maratona, e o volume médio semanal de treino foi de 68 km distribuídos em aproximadamente 7 sessões por semana nos seis meses anteriores à pesquisa. Todos confirmaram o uso de tênis com placa durante o treinamento ou competição, validando sua inclusão no estudo.
Os resultados revelaram algumas associações interessantes sobre o uso de dos calçados tecnológicos. Foi encontrada uma correlação positiva moderada (R=0.6, p<0.0001) entre o volume semanal de treino e os anos de uso destes calçados, sugerindo que corredores com maior volume de treino tendem a usar os tênis com placa por mais tempo. Contudo, a análise estatística indicou que apenas cerca de 36% da variação no volume de treino semanal pode ser explicada pela duração do uso dos tênis com placa. Por outro lado, uma correlação negativa moderada (R=-0.5, p<0.0001) foi observada entre o volume de treino e o número de sessões semanais utilizando estes tênis, o que sugere que, mesmo com volumes mais altos, os corredores tendem a não usa-los em todas as sessões. Quanto às percepções, 74% dos corredores relataram maior suporte na parte da frente do pé, 66% sentiram maior ativação muscular na panturrilha, 56% notaram uma alteração na posição do tronco e 34% relataram sentir instabilidade ao usar esses calçados. A dor muscular de início tardio (DOMS) foi frequentemente relatada nas panturrilhas (49%).
Em relação às lesões, 13,1% dos participantes relataram ter sofrido uma lesão diagnosticada por um médico após o uso de tênis com placa. Os resultados indicaram que a frequência e a duração destes calçados podem influenciar o risco. Corredores que os utilizavam em até seis sessões por semana tiveram uma probabilidade aproximadamente três vezes maior de se lesionar em comparação com aqueles que usavam em até três sessões semanais. Similarmente, aqueles que os usavam por mais de 3 anos apresentaram uma probabilidade cerca de 4,7 vezes maior de lesão em comparação com quem usava entre 1 e 3 anos. As lesões mais comuns incluíram distensões musculares na parte posterior da perna, fraturas por estresse no calcâneo e inflamação trocantérica no quadril, com padrões específicos variando conforme a frequência e a duração do uso. O tempo médio de recuperação para as lesões diagnosticadas foi de cerca de 3 meses.

Os autores apontam que a adoção destes calçados por corredores não-elite em diversas distâncias reflete sua versatilidade e apelo, mas a forma como são usadas parece ser estratégica. A correlação negativa entre volume de treino e sessões semanais com tênis com placa de carbono sugere que os corredores recreacionais podem estar reservando esses calçados para treinos específicos, possivelmente buscando maximizar benefícios em sessões chave ou minimizar o uso excessivo. Isso se alinha com a ideia de que estes tênis impõem demandas biomecânicas diferentes e podem exigir um período de adaptação, ou que a alternância de calçados pode ser uma estratégia de prevenção.
As mudanças biomecânicas percebidas pelos corredores, como o aumento do suporte no antepé e a ativação da panturrilha, são consistentes com as características destes calçados, que promovem um rolamento mais rápido e podem exigir mais dos músculos da panturrilha. A alta incidência de DOMS nesta região reforça essa observação.

A instabilidade e as alterações na posição do tronco relatadas por uma parcela dos corredores destacam que a resposta aos tênis com placa pode variar significativamente entre os indivíduos, o que sublinha a importância da orientação personalizada, pois nem todos se adaptam da mesma forma.
Embora a taxa de lesões relatada no estudo esteja dentro das estimativas gerais para corredores, os tipos de lesões observadas – especialmente fraturas por estresse e problemas musculares/tendíneos específicos – sugerem uma possível ligação com as demandas biomecânicas alteradas impostas pelos tênis com placa, especialmente com maior frequência e tempo de uso. A gravidade dessas lesões, com um tempo médio de recuperação de 3 meses, reforça a necessidade de cautela. No entanto, os autores reconhecem as limitações do estudo, como o tamanho da amostra, a dependência de relatos dos próprios corredores (que pode ter viés), a falta de um grupo de comparação que não usa AFT e o desenho transversal, que não permite estabelecer uma relação de causa e efeito definitiva. Fatores como a intensidade do treino, tipo de superfície e histórico de lesões prévias não foram totalmente controlados, e mais pesquisas são necessárias, idealmente com estudos longitudinais e randomizados.
Em conclusão, este estudo oferece insights valiosos sobre como corredores não-elite estão utilizando os tênis AFT e os desafios percebidos. Embora as correlações mostrem uma integração estratégica, os resultados sobre lesões com maior frequência e duração de uso levantam um sinal de alerta. Os autores propõem que corredores não-elite incorporem estes calçados gradualmente em suas rotinas de treino para permitir a adaptação biomecânica, começando com baixo volume e intensidade (talvez 1-2 sessões semanais), com uma transição sugerida de 4 a 8 semanas. Monitorar indicadores como dor muscular (principalmente nas panturrilhas) e incorporar exercícios de fortalecimento e flexibilidade são recomendações práticas para minimizar riscos, enfatizando sempre a necessidade de mais evidências científicas para guiar o uso ideal dessas tecnologias.
Referência Bibliográfica:
Bonato, M.; Marmondi, F.; Faelli, E.L.; Pedrinelli, C.; Ferraris, L.; Filipas, L. Advanced Footwear Technology in Non-Elite Runners: A Survey of Training Practices and Reported Outcomes. Sports 2024, 12, 356. https://doi.org/10.3390/sports12120356
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